segunda-feira, 28 de dezembro de 2009

Nascimento






Bom, como todo princípio, eu preciso dizer que nasci. Ah, mas não foi aquela coisa de sincronia: bisturi, bebê, choro, costura. Não, não.

Meu nascimento foi algo para lembrar.

Conta minha mãe, que uma mulher trazia pela mão uma menina loirinha. Ela mostrava para a menina, a minha mãe.
A menina corria para longe, sorria, mas não se aproximava...


Era dia 3, a cidade tinha luzes em todos os lugares. Não digo luzes em plantas verdes, porque, naquele fim de mundo, não havia plantas verdes: só galhos retorcidos e folhas marrom-acizentada. Cantigas natalinas iam ecoando de casa em casa e assim sendo, era noite do dia 3 e minha mãe começou a sentir dores.

Eu era uma menina qualquer e gostava do anonimato. Tinha um vestido azul e duas amigas. Não sei bem porque, e para isso eu realmente não sei nem o que dizer, mas sempre que me lembro delas, lembro de um círculo no chão e de estarmos sentadas juntas dentro dele.

O fato é que, ao que me parece ou ao que me deixo lembrar, naquele dia alguém me avisou que eu precisaria sair do círculo. Claro, eu não quis. Bati o pé de sapato branco naquela coisa fofa que me parecia nuvem.

Não me deram ouvidos. Não pude voltar para as minhas amigas.

No dia seguinte, uma sensação diferente foi chegando. Eu era pequena e via o mundo todo por um buraco pequeno. E o meu mundo estava encolhido dentro de um aquário de vidro fosco.

Era anos 80. A música era uma coisa tremendamente desesperadora e lá fora, com voz de taquara, alguém cantava “ Vamos fugir desse lugar, Baby”.

Uma mulher gritava, um homem cantava, alguém comentava que era tão complicado viver nesse ambiente e não poder ajudar. “tadinha, duvido que consiga ter essa menina”

Eu começava a descobrir que meus dedos eram pequenos, que eu não tinha cabelos nem laço e que sentia muita falta das amigas do círculo. Resolvi, não nasceria. E, impetuosa, resolvi ficar.

Dia 5 chegou. Dia de Santa Bárbara. Resolvi que fincaria a barraca naquele terreno e não sairia.

Espiei, é fato. E nisso ouvi alguém gritar “Coroou! Coroou!”.
Mas eu não ia. Eu não queria ir.

O caso é que comecei a sentir pena de minha mãe. Eu bem que poderia sair um pouco, dar-lhe uma boa explicação e depois tentar uma autorização com duas vias, carimbada, de volta para a casa... Não tive tempo de entregar o passo. Como um trovão algo me agarrou pela cabeça. Fui puxada na marra, para aprender a deixar de ser atrevida e nascer de uma vez.

Foi muita emoção. Ou susto. O coração, acostumado ao círculo e ao jogo das três Marias não agüentou: Parada cárdio-respiratória, reanimação, médicos balançando a cabeça. Minha mãe que vinha de tão longe e eu que ia para longe dela. Soluçava, soluçava... Nada dava jeito. Deram-me por perdida e me entregaram a enfermeira-bruxa do centro cirúrgico.

Ah, essa é a pior parte da história. Contente eu ia, com certa dó da mãe, pegando o túnel de luz com o metrô de Ghost - O outro lado da vida, (daqui a alguns anos alguém terá que explicar o que é que tem a ver a minha ida desse mundo com o metrô de “Ghost – O outro lado da vida), já conseguindo ver a minha parada, quando senti uma dor, uma dor, um DOR!

Não pude me conter. Aquela esperta tinha me batido no calcanhar de Aquiles. Precisava revidar!
Bradei! E bradei a noite inteira depois disso.
Iria de manhã para a minha calmaria, mas, naquela noite, ninguém naquele hospital dormiria...

E não dormiram.

Nem a mãezinha. E nem os olhos castanhos dela. E nem o braço quentinho dela. Nem o sorriso bonito dela. Nem o leite quente. E nem aquele homem de voz de taquara rachada, que, segundo o que eu soube depois, pulou a janela do hospital para dormir escondido com a mãezinha.






E, é... eu nasci.



As Ilustrações são minhas!! :)